VelociRap – Dissertação Sobre Velocidade
1) Enquadramento
Muita gente me goza
quando digo que acho correcto cumprirem‑se os limites de velocidade na
estrada. A maioria acha que é porque não quero apanhar multas, mas a impressão
mais forte com que fico é que as pessoas acham que é uma questão simples e sem
profundidade: os carros hoje em dia são melhores que antigamente, e por isso o
povo exige andar mais depressa. E aparecem valores para a velocidade limite
ideal, como por exemplo 150 Km/h, sem qualquer fundamento. Não obstante, estas
velocidades ideais são defendidas com grande entusiasmo e com muito afinco!
Para esta dissertação
concentro‑me na velocidade automóvel, e, especificamente, na velocidade
limite máxima em Portugal, de 120 Km/h em auto-estrada, tentando determinar se
é a ideal ou não. Proponho‑me ainda demonstrar que não tem lógica
definirmos velocidades em função do que nos parece adequado à nossa condução,
mas sim em função dos direitos dos restantes condutores na estrada.
Como tantos outros assuntos,
quando se começa a escavar a superfície dá para perceber que há um mundo de
questões enterradas. Pessoalmente espanta‑me que tanta gente encare o
assunto de forma superficial. E por causa de já ter tido inúmeras conversas
sobre isto decidi escrever para não ter de me repetir tanto.
2) O
Problema
O problema da velocidade
é razoavelmente intuitivo: coisas que andam depressa provocam estragos quando
chocam com coisas que andam devagar, ou que não andam, ou que andam em sentido
contrário. Mas há razões científicas, sócio‑económicas, e políticas, para
a velocidade ser um problema. E talvez hajam ainda outras razões!
3) Razões
Científicas
Estatística
Devido à crise do
petróleo da década de 70 o Congresso Norte‑Americano decretou um limite
de velocidade de cerca de 90 Km/h para todos os estados. Até aí cada estado
definia o seu limite de velocidade individualmente, mas para poupar combustível
o limite foi imposto a todos os estados, e os que não aderissem sofriam
penalizações. A poupança de combustível era óbvia, mas também se tornou evidente
que essa medida poupava vidas humanas.
A segurança na estrada e
a sua relação com a velocidade pode dividir‑se em 3 frentes:
a)
Quanto maior
a velocidade menor o tempo de reacção aos perigos, sejam eles objectos na
estrada, outros condutores, pessoas, ou mesmo animais.
b)
Quanto maior
a velocidade maior a dificuldade em abrandar o veículo a tempo antes da
colisão, pois a dissipação da energia de movimento (energia cinética) demora um
tempo aproximadamente proporcional ao quadrado da velocidade.
c)
Quanto maior
a velocidade maior a desaceleração a que os passageiros ficam sujeitos quando
chega o momento do impacto, e a probabilidade de ocorrerem fatalidades aumenta
aproximadamente com a 4ª potência da diferença de velocidades no momento do
impacto.
Estes factores conjugados
são responsáveis por grandes diferenças na probabilidade de os passageiros
sofrerem ferimentos sérios, pois todos eles acumulam e todos aumentam a
gravidade com a velocidade. O exemplo seguinte assume um caso típico de alguém
que circula pela auto-estrada, e após uma curva se depara com um camião
carregado (40 toneladas) e parado 100 metros após a curva, num dia bom com piso
seco, e com pneus novinhos em folha (coeficiente de 0.8 em vez do mais comum de
0.7 ou 0.6 para pneus usados), e trava a fundo.

Física
A energia acumulada num
objecto em movimento tem de lhe ser retirada quando se quer que ele pare. Um
automóvel de 1000 Kg a deslocar‑se a 120 Km/h tem uma energia acumulada
de cerca de 550.000 Joules. Esta energia é suficiente para atirar um homem de
70 Kg a mais de 800 metros de altura (se não fosse a resistência do vento a
travá‑lo), e no momento do arranque ele deslocar‑se‑ia a mais
de 450 Km/h. Este exercício matemático serve para perceber, desde logo, que a
energia de um automóvel destes em movimento numa auto-estrada dá para fazer uma
pessoa em fanicos. E também se percebe que se os travões e pneus conseguem
tirar a energia a um ritmo constante (pois aplicam uma força máxima), então as
distâncias de paragem seguem uma lei quadrática.
A tabela seguinte mostra
vários carros comuns e a energia que contêm no seu movimento a várias
velocidades. A tabela não considera os pesos dos passageiros. A título de
curiosidade a tabela inclui o valor energético para um camião TIR carregado com
40 toneladas, apesar de este caso estar excluído desta dissertação.

Se tivermos em mente que
quanto mais energia acumulada o veículo tiver então maior a sua capacidade de
fazer estragos, então esta tabela mostra bem a diferença entre a quantidade de
energia armazenada sob a forma de movimento entre os vários veículos se
circularem à mesma velocidade. Mas, ainda mais, mostra as diferenças entre
quaisquer dois automóveis, de massas diferentes, a velocidades diferentes (por
exemplo, um Land Rover a 120 Km/h tem mais de 17 vezes a energia de um Smart a
50 Km/h, embora a velocidade seja apenas 2.4 vezes superior).
A tabela também mostra
algo menos óbvio para muita gente, que é o facto da energia seguir uma lei
quadrática (e não linear com a velocidade), pois, por exemplo, um aumento de 3x
na velocidade de um veículo corresponde a um aumento de 9x na sua energia
acumulada (e portanto 9x na distância de travagem). Isto significa que quando
se pretende imobilizar o veículo (e portanto só as pastilhas de travões é que
retiram a energia do carro em vez da deformação dos materiais) então a
distância de travagem segue também uma lei que é quadrática (pois a quantidade
de energia que as pastilhas conseguem retirar em cada segundo é mais ou menos
constante e limitada pela capacidade do material).
Se contemplarmos o tempo
de reacção do condutor as contas são mais complexas, claro, mas podemos assumir
que o tempo de reacção é constante (ou pelo menos que existirá um valor médio
obtido por análise estatística). Em qualquer caso o tempo de reacção só agrava
estes números. E se não fosse pelos sistemas de ABS e a tecnologia dos pneus e
pastilhas as distâncias de travagem seriam ainda piores. Isto é importante
porque a melhor maneira de evitar acidentes é, em geral, imobilizando o veículo
a tempo. Em qualquer caso, considera‑se comum que o tempo de paragem é
igual ao tempo de travagem mais 1 segundo de reacção.
Vamos imaginar uma
situação hipotética de choque entre um Land Rover de 2250 Kg a 120 Km/h contra
a traseira de um Smart de 740 Kg a 50 Km/h. Faço notar que ambos os veículos
circulariam a uma velocidade legal, por isso estaremos a imaginar um acidente fortuito,
sem ilegalidade nem asneira óbvia de ninguém, em que o Land Rover sofreu, por
exemplo, um furo e perdeu o controlo. Esta situação não é a pior, pelo
contrário será uma das mais optimistas, pois trata‑se de uma colisão
muito simples numa auto-estrada, num caso em que ninguém esteja manifestamente
a fazer asneira (vamos assumir que não há ninguém parado numa auto-estrada nem
a fazer marcha atrás nem algo do género).

Este desenho (feito com
as mais modernas tecnologias gráficas) exemplifica o impacto. Nesta situação, e
tendo em conta as técnicas de concepção dos automóveis modernos, será normal a
maior parte da energia ser absorvida pelos materiais. Eles são dimensionados
para dissipar uma certa quantidade de energia suavemente, desacelerando o resto
das peças do veículo, incluindo os interiores e os passageiros (que estarão, na
maior parte dos casos, fixos aos assentos pelos cintos de segurança).
Essas zonas de deformação
são as exteriores do veículo, e considera‑se que o habitáculo (o espaço
onde estão os passageiros) se quer o mais rígido possível (sem deformação
absolutamente nenhuma) seja qual for a gravidade do embate, pois se algo
invadir o habitáculo não só reduz os espaço disponível para cabeças, troncos,
braços, e pernas desacelerarem, mas também porque algum objecto “menos macio”
que entrasse no habitáculo poderia facilmente provocar danos nos passageiros. As
partes deformáveis estão dimensionadas para uma certa velocidade máxima de
embate, e por isso em embates com diferencial de velocidade mais pequeno a
deformação não será total (como mostra a figura da colisão).
Para concluir este
exemplo imaginemos que o Land Rover tem um máximo cerca de 1,2 metros de frente
para a absorção de energia, e que o Smart tem um máximo de 40 cm de traseira
para o mesmo fim (incluindo bagageira e espessura dos bancos). E vamos imaginar
que foram ambos projectados para utilizar todo esse espaço em impactos com um
diferencial de velocidade máximo de 120 Km/h. Assim, podem calcular‑se
alguns dados:

Psicologia
4) Razões
Sócio‑Económicas
Em termos sociais o
aspecto mais importante a considerar fica patente no exemplo do Land Rover a
colidir com a traseira do Smart. Na realidade, e quando se fala em
incumprimento do limite de velocidade, estaremos a falar do problema social e
cívico que é aumentar o risco de os outros morrerem por nossa causa. Ou
morrerem, ou partirem uma perna, ou mesmo (no caso de acidentes menos graves) de
sofrermos o incómodo de um nabo qualquer que não respeitou o limite provocar um
acidente que nos dá cabo do carro todo!
Deveria ser a
responsabilidade de todos os condutores não aumentarem o risco para os outros.
O pior argumento que os maus condutores vulgarmente dão é que têm um carro bom,
e portanto podem andar mais depressa. E o argumento é mau porque o nosso Estado
concede o direito aos menos ricos de, ainda assim, terem um carro. Para isso o
Estado permite que se vendam carros de 7.000 EUR ou 10.000 EUR, que estão nos
mínimos da segurança, e isso é correcto num Estado como o nosso que reconhece
direitos aos cidadãos menos afortunados. Para que esses carros baratos sejam
seguros basta que os limites de velocidade sejam respeitados por todos.
Só porque alguns querem
circular a 150 Km/h não seria aceitável num país como o nosso impedir‑se
a homologação de carros de 10.000 por não estarem aptos a lidar com acidentes a
essas velocidades. Subia‑se a fasquia para que valores? Carros de 20.000
EUR? Isso era o mesmo que dizer que as nossas estradas iam passar a favorecer
os ricos e a prejudicar (ou mesmo impedir) a circulação de pobres. Num Estado
com vocação social como o nosso isso simplesmente não seria aceitável.
Outra forma de aumentar o
limite dentro dos mesmos patamares de segurança: poderíamos optar por colocar
limites nas nossas auto-estradas entre 80 Km/h e 150 Km/h, por exemplo.
Todavia, isso também não seria aceitável, pois se algum velhinho quer andar a
60 Km/h deveria estar no seu direito. E se algum condutor circula com reboque,
ou se algum camionista transporta matérias perigosas, é importante que possam
circular a menos de 80 Km/h. A ideia geral é que a estrada é para todos, e este
é um princípio com o qual é fácil concordar à luz das nossas cultura e
tradição, e isso consegue‑se facilmente com um limite de velocidade
razoável, como 120 Km/h.
Depois há outro factor
social a considerar: o de gerir bem o equilíbrio entre velocidade e morte. No
nosso país isso tem sido bem conseguido, e tem‑se baixado o número de
fatalidades sem reduzir os limites de velocidade. Note‑se que teria muito
mais simples reduzir os limites de 120 Km/h para 100 Km/h ou de 50 Km/h para 30
Km/h. Em vez desta solução muito mais simples (que até seria lucrativa por via
das multas) tem‑se investido em medidas muito mais complexas como as
inspecções periódicas automóveis e campanhas de sensibilização nos média.
Assim, quando se define
um limite de velocidade assume‑se que se quer a maior velocidade que
resulta num número de mortos “ainda razoável”. Esta abordagem levanta muitas
questões éticas, e qualquer defensor da vida puxaria a coisa para o lado do
“mais devagar”. Quem tem pressa ou nunca pensou muito no assunto geralmente
puxa para o lado do “mais depressa”. O equilíbrio deverá então ser achado da
forma mais sensata e informada, em vez de se mandarem novos limites para o ar
como 150 Km/h, por exemplo, sem fundamento nenhum. É importante não esquecer
que um aumento de 5 Km/h pode resultar na morte de mais pessoas, e todas elas serão
filhos de alguém ou irmãos ou conjugues.
Outro aspecto
interessante é o custo com seguros. Mais uma vez não queremos favorecer apenas
os ricos, e por isso quer‑se que os prémios de seguros estejam também sob
controlo. Em 2006 a média dos valores dos prémios de seguros automóveis foi de
1240 EUR, e em 2005 os custos brutos com sinistros foram de cerca de
1.400.000.000 EUR (ISP), e os custos globais (incluindo os indirectos) foram de
4.000.000.000 EUR (APM‑JC).
O mesmo raciocínio se
aplica aos custos com hospitais, pois actualmente os acidentes de viação custam
ao Estado quase 5% da riqueza produzida em Portugal. Os custos hospitalares que
resultam da sinistralidade automóvel rondam anualmente os 2.700.000.000 EUR,
aos quais acrescem os custos das indemnizações, das pensões de invalidez, e das
baixas de trabalho. Muitas destas verbas são dispendidas pelo Estado directa ou
indirectamente (Correio da Manhã).
Em termos de projectos
rodoviários é importante também haver limites de velocidade bem definidos, pois
estes são um factor limitador nas características físicas das estradas e auto-estradas.
Seria caro ao nosso país construir vias de um novo tipo, chamadas de, por
exemplo, autoestrada‑expresso, com limites entre os 80 Km/h e os 150
Km/h, e de garantir a sua qualidade ao longo dos anos, e para todas as
condições meteorológicas. E tudo isso para se ganharem uns minutos em cada
viagem!
5) Razões
Políticas
Pode ser interessante
uniformizar a velocidade máxima na Europa. Claro que primeiro tem de se
uniformizar a qualidade das vias e o seu tipo. Mas como primeiro passo a
uniformização da velocidade máxima permite uma redução significativa no custo
de fabrico dos automóveis, e é importante notar que o nosso país é um dos
países da Europa mais sensíveis a esses custos.
Outra razão política
muito importante deriva da péssima imagem das estradas e condutores portugueses
no estrangeiro, e os correspondentes prejuízos no turismo.
A “malta verde”
(associações e grupos de activistas defensores do ambiente) querem que se
baixem os limites de velocidade para proteger o meio ambiente (pois menos
velocidade resulta em menos emissões de poluentes). Um dos seus alvos
preferidos é a Alemanha, com as suas estradas especiais que não têm limite de
velocidade. A mesma Alemanha tem uma tradição de conduzir depressa e como um
dos construtores mundiais dos mais emblemáticos “carros velozes” defende
afincadamente a preservação das “auto-estradas deslimitadas” (autobahn).
6) Outros
Limites
Claro que é importante
considerar outros limites, como o de 50 Km/h dentro das localidades. Este é
particularmente importante, pois concluiu‑se, estatisticamente, que 60
Km/h era um limite demasiado alto (com taxas de fatalidade muito elevadas) e
que um limite de 50 km/h é muito menos perigoso para peões.
Os motociclos, por
exemplo, são um problema porque os sistemas de restrição e protecção de que
dispõem são praticamente nulos, e demonstra‑se que com um impacto no
capacete superior a uns 20 Km/h a probabilidade de sobreviver sem danos
permanentes é muitíssimo baixa. Aliás, a melhor hipótese dos motociclistas é caírem
no asfalto sem chocarem com nada, para desacelerarem suavemente.
Os pilares de suporte das
barreiras de protecção são responsáveis por um grande número de baixas entre os
motociclistas, mas como os custos de modificar toda a infra-estrutura são
muitíssimo elevados e os motociclistas são, comparativamente, poucos, então
seria mais fácil simplesmente proibir o acesso destes veículos às auto-estradas.
Enquanto isso não acontece os motociclistas continuarão a ter o maior número de
fatalidades em relação ao número de acidentes nos quais estão envolvidos (mais
do dobro dos ligeiros de passageiros).
E ainda será importante
falar de pisos molhados, danificados, pneus em mau estado, veículos mais velhotes
(não esquecer que os proprietários deverão ter o direito de os manter a custos
razoáveis, na lógica de Estado social), animais, e todas as outras
condicionantes que fazem com que os limites de velocidade máximos devam ser
reduzidos. Fora das localidades, onde se dão os acidentes com maior gravidade,
o limite de 90 Km/h é o mais enganador pois a maioria das estradas nacionais
não tem condições para velocidades tão elevadas.
7) Conclusão
Estão aqui apresentadas
inúmeras razões para que hajam limites de velocidade impostos por lei. E também
estão evidenciadas algumas razões a justificar porque esse limite não deverá
andar muito longe dos 120 Km/h. Para um maníaco da segurança rodoviária (como
eu) o direito de exigir que os outros não ultrapassem esses limites é
inquestionável.
Se eu vou na auto-estrada
a 120 Km/h e alguém passa por mim a 150 Km/h ou 180 Km/h porque razão tenho de
confiar que essa pessoa sabe conduzir a essas velocidades? É mais do que certo
que essa pessoa pensa que sabe conduzir depressa, mas as estatísticas mostram
que a quantidade de pessoas dessas que estão enganadas é muito alta. E já não
falo em saber conduzir depressa: porque é que essa pessoa acha que consegue
lidar com um imprevisto como um furo ou um animal na estrada quando vai a essas
velocidades? Porque é que essa pessoa acha que tem o direito de arriscar a
minha saúde??